O referendo ao aborto fez um ano. Aproveitando a data redonda a comunicação social virou as antenas para o tema e foi ver como anda a aplicação da lei. Como seria de esperar, não anda grande coisa. No espaço de seis meses algumas dezenas de mulheres já recorreram aos hospitais públicos para realizar mais do que um aborto, o que levou um alto quadro da DGS a suspirar: "Alguma coisa está errada com as senhoras." Metade das mulheres que abortam não põe os pés nas consultas (supostamente obrigatórias) de planeamento familiar. E o aborto clandestino, esse, continua a ser praticado, já para não falar nas adolescentes que engolem Cytotec aos cinco meses de gravidez.
Não é de todo minha intenção voltar à vaca fria. Eu acredito, e deixei escrito, que se perdeu uma boa oportunidade para se ser realmente liberal e pôr o Estado de fora deste assunto: mantinham-se as regras da antiga lei em vigor nos hospitais públicos e permitia-se o aborto a pedido até às 10 semanas, mas só em clínicas privadas. Ninguém quis ir por aí, simplesmente porque ninguém se deu ao trabalho de ouvir o que a outra parte tinha para dizer, preferindo cavar trincheiras morais. Assim, se antes tínhamos uma posição insustentável, com mulheres arrastadas pelos tribunais, agora ficámos com esta coisa bizarra de o Estado não oferecer a uma adolescente pobre a possibilidade de ela tratar uma cárie dentária, mas oferecer a uma adolescente rica a possibilidade de ela realizar um aborto. E isto, vão-me desculpar, não é demagogia - é a realidade dos factos. A realidade dos factos neste país é que é tão absurda e vergonhosa que se confunde com demagogia quando nos limitamos a descrevê-la.
Agora, o que parece claro é que o aborto não pode ser um assunto que o PS despachou com um referendo, lavou as mãos com desinfectante e mandou para trás das costas, e ao qual só gosta de regressar quando lhe dá jeito fingir que está a governar "à esquerda". É preciso ter a lei em constante reavaliação; e é preciso ter a coragem para prestar contas e mudar o que está mal - como a permissão de uma mulher praticar abortos em série com o patrocínio do Estado. De outra forma, perante a inércia nacional, com esta nova lei tem-se aquilo em que se votou - a possibilidade de abortar sem se ser condenado por isso - e aquilo em que não se votou - a permissividade total em relação ao aborto, mesmo nos casos em que ele é ilegal. Há um trabalho imenso pela frente e convinha fazê-lo com seriedade, porque a estupidez e a ignorância são mais difíceis de extirpar do que um feto de 10 semanas. E, infelizmente, não desaparecem com referendos e linda legislação.
*João Miguel Tavares, DN 19/02/2008